Carantânia: o que foi?
A Carantânia surgiu no coração dos Alpes orientais, cobrindo o planalto do Zollfeld e áreas que hoje pertencem ao sul da Áustria (Caríntia) e ao nordeste da Eslovênia. O núcleo foi a região em torno da atual Klagenfurt / Karnburg. Características geográficas importantes da região eram:
- Planaltos férteis (Zollfeld)
- Vales alpinos
- Rotas que ligavam a Bacia do Danúbio ao Adriático
Esses três fatores condicionaram a economia e o controle político local.
Quem eram os carantanos? (origens e identidade)
Os carantanos eram povos eslavos alpinos que se consolidaram regionalmente após o colapso do reino de Samo (século VII). A etnogênese combina tribos eslavas locais e dinâmicas próprias da região alpina.
Do ponto de vista linguístico/cultural, tratava-se de falantes do proto-eslavo ocidental/meridional que desenvolveram tradições próprias (costumes, ritos de instalação de líderes, estruturas comunitárias).
Linha do tempo essencial
- c. 658 — formação atribuída (período pós-Samo).
- meados do séc. VIII (c. 745) — Carantânia torna-se tributária/aliada da Baviera/Francos (pressões de Avaros e dinâmica regional).
- século VIII–IX — processo de cristianização iniciado por missionários ligados a Salzburg.
- c. 828 — autonomia interna se reduz; Carantânia é integrada na administração franca e transforma-se gradualmente na Marca/Ducado de Caríntia (séculos IX–X)
Estrutura política e sistema administrativo
- Forma de governo (antes da integração franca): um príncipe/chefe tribal (em fontes latinas aparece como princeps) apoiado por elites locais e por unidades comunitárias — a organização local dividia-se em župas (unidades territoriais/comunais). Havia também um grupo militar/elitista chamado kosezes (kosezi / kasazes), que funcionava como nobreza militar/local.
- Processo de escolha e rituais: fontes medievais indicam que, tradicionalmente, o povo ou representantes comunitários tinham papel na escolha do líder em certas ocasiões — ligando essa prática a ritos de instalação (mais tarde transformados em cerimônias duchiais). A cadeira do duque (o chamado “Duke’s Chair” / cadeira do líder em Karnburg/Zollfeld) é símbolo dessa continuidade ritual até épocas bem posteriores.
- Após submissão aos Francos: a autonomia política foi gradualmente substituída por instituições administrativas francas — condados e marcas (marches), autoridades nomeadas/inspecionadas por Baviera/Carolíngios, cobrança de tributos dentro do sistema franco. Essa transição transformou a elite carantana e o modo de governo local.
Sociedade, economia e vida quotidiana
- Economia mista: agricultura nas áreas de planalto (Zollfeld), pastoreio alpino, exploração de recursos locais e controle de rotas comerciais regionais. Vila/aldeia e estrutura comunitária em torno das župas.
- Estratificação: líderes/príncipes, a pequena nobreza militar (kosezes), e populações camponesas/agrícolas. As elites locais controlavam a mobilização militar e cooperavam (ou resistiam) às autoridades bávaras/francas.
Cristianização e igreja
- A cristianização dos carantanos veio pela via ocidental, ligada ao Arcebispado de Salzburg. Missionários (entre eles Modestus, às vezes chamado “Apóstolo dos Carantanos”) foram ativos na região; a conversão ocorreu sobretudo nos séculos VIII–IX e ajudou a integrar Carantânia ao sistema cultural-germânico/cristão ocidental.
- A adesão ao cristianismo também foi política: facilitou alianças com Baviera/Francos e justificou formas de governo e reorganização administrativa à maneira carolíngia.
Relações externas e militares
- A Carantânia sofreu pressões diretas dos Avaros e, por isso, firmou alianças/tributos com os Bávaros e, mais tarde, com os Francos para proteção. A aliança/tributação com os francos transformou o padrão de soberania local.
- Houve episódios de resistência/participação em levantes regionais (o quadro político dos Bálcãs e dos territórios eslavos do Danúbio era fluido durante o período).
Transformação política: medievo tardio e legado
- Entre o final do século VIII e o IX a autonomia carantana foi sendo reduzida; no âmbito carolíngio a região foi reorganizada e, com o tempo, emergiu como a Marca e depois o Ducado/Condado de Caríntia (Carinthia) — entrada definitiva no mundo franco-germânico feudal.
- Legado cultural: os carantanos/ suas tradições rituais influenciaram identidades regionais posteriores (os atuais povos da Caríntia/parte da Eslovénia). Alguns ritos de instalação ducal ligados à Carantânia foram lembrados e instrumentalizados no período medieval tardio.
O que Jean Bodin diz sobre a Carantânia
Jean Bodin (teórico e jurista francês, 1530-1596) destaca em uma de suas obras um rito medieval peculiar e notável praticado na Carantânia, apresentando-o como um exemplo singular de participação democrática — algo excepcional na Idade Média. Em sua descrição, ele enfatiza que, durante a cerimônia de instalação do príncipe ou duque (knèze), um camponês livre era escolhido para interrogar o governante proposto, reforçando assim sua legitimidade com base na responsabilidade perante o povo.
Esse ritual envolvia o seguinte procedimento:
- O duque estava sentado sobre a famosa “Pedra do Príncipe” (Knežji kamen).
- Um camponês livre, representando o povo, fazia perguntas que testavam a integridade e os deveres do futuro governante.
- Esse gesto simbólico ilustrava uma forma de controle popular e lembrete dos compromissos do líder para com seus súditos.
Bodin ressalta que tal cerimônia era uma reminiscência — ou “antecedente único” — de formas populares de escolha ou validação de poder em um contexto europeu medieval extremamente marcado por estruturas autoritárias.
Resumo organizado
| Elemento | Detalhes principais |
| Rito observado | Nomeado por Bodin como um exemplo singular de coerência popular na legitimação do poder. |
| Personagem central | Um camponês livre era escolhido para interrogar o futuro duque, atuando como representante do povo. |
| Símbolo físico | O candidato sentava-se sobre a “Pedra do Príncipe” como parte do ritual. |
| Significado simbólico | Uma clara ilustração da obrigação do príncipe em servir o bem público, lembrado por um representante do povo. |
| Atenção histórica | Bodin valoriza essa prática como um vestígio raro e significativo de participação democrática na governança medieval. |
A Carantânia e a Teoria da Soberania de Bodin
Contexto da obra
Jean Bodin é o teórico que formula de modo mais sistemático a ideia de soberania como poder absoluto, perpétuo e indivisível da República. Ele critica sistemas em que a autoridade é fragmentada ou instável. Porém, em sua análise histórica comparada, ele traz exemplos de práticas políticas diversas, inclusive de povos “periféricos” da Europa, como os eslavos carantanos.
A Carantânia em Bodin
Bodin descreve o rito de instalação do duque carantano como um caso único em que o povo participava diretamente da legitimação do governante. Esse procedimento acontecia sobre a Pedra do Príncipe (Knežji kamen), onde o futuro governante se submetia às perguntas de um camponês livre.
Para Bodin, esse ritual era extraordinário porque invertia temporariamente a hierarquia: o príncipe respondia, o camponês julgava.
Relação com a soberania
Bodin não via a Carantânia como um “modelo a ser seguido”, mas como um exemplo curioso de limitação do poder. A cerimônia mostrava que, antes de exercer o poder soberano, o príncipe era lembrado de que deveria servir ao bem comum.
Isso ilustrava o que Bodin chama de consentimento inicial do povo, que legitima a soberania, mesmo que depois ela seja indivisível e perpétua. Em outras palavras: o governante nasce do povo, mas, uma vez instituído, concentra a soberania.
Interpretação histórica
O caso da Carantânia foi usado por Bodin para mostrar que, na história, existiram rituais que reconheciam o papel do povo. Porém, sua teoria geral permanece: só pode haver um centro soberano de poder (o príncipe, ou a República).
O rito carantano seria, portanto, uma curiosidade etnográfica que confirma a regra: mesmo quando o povo participa, a soberania precisa se consolidar na figura do governante.
Em resumo
Bodin usa a Carantânia como exemplo de como diferentes povos organizaram a legitimação do poder. O rito de um camponês interrogar o príncipe serve como lembrete simbólico de que a autoridade deriva do povo. Contudo, para Bodin, a soberania verdadeira não se fragmenta: uma vez confirmado, o duque carantano exercia o poder pleno da República.
“Na Carantânia, antes que o duque pudesse governar, era interrogado por um camponês livre, assentado sobre a Pedra do Príncipe.”
Este rito, segundo Bodin, revela uma forma singular de consentimento popular na lenta legitimação do poder. Ainda que o príncipe exerça soberania plena — indivisível, perpétua e absoluta —, esse ritual simboliza que a autoridade nasce da conexão com o povo, reforçando sua responsabilidade para com o bem comum.
A Carantânia é considerada o primeiro “estado” eslavo e o ritual descrito por Bodin tem símbolos que estão presentes na teoria da democracia contemporânea. O camponês sentado no lugar do futuro imperador representa a empatia que deve haver entre os membros da nação que são iguais perante a lei.
O futuro governador incorpora também a classe desprotegida simbolizada pelo vestuário de um pobre pastor. Nas crenças antigas, o sopro tinha o significado do espírito, ou seja, quando o camponês sopra sobre o futuro governador, transmite-lhe supostamente o espírito do povo, o que, transposto para o governo de hoje, representa a solidariedade entre as várias classes sociais, desejável numa nação democrática.
