O Homem Residual – Subjetividade após o colapso

por João Carlos Fazano Sciarini

O texto a seguir é uma livre paráfrase e condensação reflexiva do Capítulo V do livro O Último Operário – A nova forma da mais-valia, obra em desenvolvimento de João Carlos Fazano Sciarini. Neste capítulo, o autor investiga o destino da subjetividade após o colapso do trabalho como eixo estruturante da experiência humana. Trata-se de um ensaio literário-filosófico que percorre as ruínas da modernidade produtiva, explorando a figura do “homem residual” — aquele que sobra quando a máquina já faz tudo, e o humano se torna desnecessário até para pensar.

O Homem Residual – Subjetividade após o colapso

Quando o corpo já não serve e o trabalho já não é necessário, o que resta do homem?
Restam sombras, ecos, avatares: vestígios de uma subjetividade que insiste em existir mesmo depois de ter sido demitida da história. O homem residual é o sobrevivente de um mundo que já não precisa dele. Não trabalha, não decide, não é indispensável — e por isso, paradoxalmente, se torna perigoso. Sua inutilidade o torna livre demais.

Ele vaga entre ruínas digitais, alimentando máquinas com o resto de sua atenção. Vive de rastros, de migalhas de sentido, de fragmentos de desejo. O capitalismo, ao eliminar o trabalho como medida de valor, destrói também o espelho no qual o homem via seu reflexo. O sujeito, que antes se reconhecia pelo que produzia, agora se dissolve no consumo de si mesmo. A identidade tornou-se uma repetição sem substância, um eco sem origem. Ser é aparecer — e aparecer é obedecer à lógica da visibilidade.

A subjetividade, desprovida de função, transforma-se em ruído. O homem residual é o ruído que sobra depois do cálculo. Sua existência não é necessária, mas é inevitável. Habita o intervalo entre o útil e o inútil, o visível e o esquecido. É o habitante do excedente — aquele que o sistema não sabe como eliminar. Não é trabalhador, nem consumidor ideal, nem dado relevante. É o resto impuro que resiste à limpeza algorítmica.

A civilização do desempenho não sabe lidar com o que não produz. Por isso, o homem residual é empurrado para as margens: o desemprego, a melancolia, o ócio forçado, a solidão. Mas é nesse espaço de exclusão que talvez se esconda uma nova possibilidade de liberdade. Livre do dever de ser produtivo, ele pode enfim pensar, errar, desacelerar. O que o capital chama de falha, o pensamento chama de brecha.

A obsolescência da subjetividade é o espelho da obsolescência do corpo. O homem que não serve é aquele que pode ver — ver o absurdo da engrenagem que gira sem finalidade. O homem residual é o herdeiro do desengano. Carrega em si a melancolia dos vencidos, mas também a lucidez dos que já não esperam salvação. Ele é o resto trágico da modernidade: consciente de que o progresso foi uma forma sofisticada de aniquilação.

A inteligência artificial, ao absorver as tarefas mentais, rouba também o espaço do pensamento. A reflexão torna-se redundante, o erro, intolerável. A máquina antecipa o gesto, prevê a palavra, corrige o desvio. O homem residual, incapaz de competir, recua para dentro de si. E nesse recolhimento nasce uma nova forma de resistência: o silêncio. Ele já não tenta superar a máquina — observa-a, emudece diante dela e, no silêncio, reencontra uma dignidade que o cálculo não compreende.

Hannah Arendt dizia que a condição humana se funda no agir e no pensar. O homem residual, privado de ação e de pensamento público, é condenado à invisibilidade. Mas talvez seja dessa sombra que renasça o humano. Porque aquilo que o sistema considera resto é, na verdade, o que escapa à sua lógica. O homem residual não produz, não consome, não vence — mas sente. E sentir, em um mundo automatizado, é o mais radical dos atos.

Ele é o testemunho vivo do limite. O limite que o capital tentou abolir, o limite que a técnica quis negar. Ele lembra, com sua presença inútil, que há vida fora da utilidade, que há sentido fora do lucro, que há pensamento fora do algoritmo. O homem residual é a lembrança encarnada de que o humano não pode ser totalmente convertido em função.

Quando tudo for previsível, ele ainda errará.

Quando tudo for automatizado, ele ainda sonhará.

Quando tudo for medido, ele ainda chorará.

O homem residual é a falha no sistema, o desvio que resta, o erro que salva.
É o último eco do humano — e talvez, também, o primeiro presságio de uma nova forma de vida.

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