Os fios culturais da África Oriental: povos, instrumentos e micro-histórias de uma região plural

A música é um dos caminhos mais eficazes para rastrear transformações culturais na África Oriental. Cada povo carrega instrumentos que funcionam como “objetos históricos” no sentido chartieriano: condensam práticas sociais e modos de percepção.

A África Oriental é um dos espaços culturais mais complexos do continente, marcada por dinâmicas históricas que combinam mobilidade, formação de reinos, sistemas de parentesco, cosmologias diversas e redes de circulação musical. Para compreendê-la, a História Cultural, tal como formulada por Chartier, oferece ferramentas para analisar as práticas, representações e formas simbólicas que estruturam o cotidiano dos povos.

A micro-história, por sua vez, permite observar, em escala reduzida, como certos gestos musicais, instrumentos ou tradições locais revelam processos maiores de organização social. Ao cruzar as duas metodologias, é possível produzir uma leitura que vai do amplo ao minúsculo, da região como totalidade aos sons particulares que marcam cada comunidade.

Regiões e países que compõem a África Oriental

Para entender essa diversidade, é útil começar pela divisão regional dos países que integram a África Oriental.

Grandes Lagos

Nos Grandes Lagos, encontramos os seguintes países:

Chifre da África

No Chifre da África, estão:

África Oriental Continental

Na África Oriental Continental, surgem as seguintes nações:

Litorais do Oceano Índico

Nos litorais do Oceano Índico, estão:

Esses países frequentemente se relacionam culturalmente com o bloco oriental por meio de rotas históricas de navegação, comércio e diásporas.

Uma divisão geográfica e cultural

Essa divisão não é apenas geográfica: cada região articula sistemas culturais próprios, que incluem reinos históricos (Buganda, Bunyoro-Kitara, Rwanda, Burundi), redes comerciais costeiras islamizadas, populações pastoris do Chifre e sociedades insulares com forte influência austronésia.

Assim, a expressão África Oriental designa um mosaico histórico, e não uma unidade homogênea.

Povos tradicionais: identidades em movimento

A região abriga um conjunto de povos que expressam a heterogeneidade histórica da África Oriental.

Povos tradicionais dos Grandes Lagos

Entre os Grande Lagos, estão os seguintes povos:

Cada um destes povos guarda práticas culturais e musicais muito particulares, relacionadas a formas de organização política — como os reinos centralizados do Uganda — ou a sistemas de parentesco mais descentralizados encontrados em áreas rurais da Tanzânia.

Povos tradicionais do Chifre da África

Os povos do Chifre da África incluem:

Eles combinam tradições cristãs orientais, islamizadas e animistas, representando um dos mais antigos centros civilizatórios africanos, ligado a tradições literárias como o Ge’ez e a formas musicais como os cânticos das igrejas etíopes e as estruturas poéticas somalis.

Povos tradicionais da África Oriental Continental

Na região continental e ribeirinha, surgem os seguintes povos:

São povos que relacionam ancestralidade e paisagem, com cosmologias que integram gado, pastoreio e movimentos territoriais.

Povos Tradicionais dos Litorais do Oceano Índico

Já nas ilhas e litorais, encontramos:

Todos esses povos são conectados à história do Oceano Índico, do comércio árabe e persa às influências indianas.

Instrumentos tradicionais: materialidades do som

A música é um dos caminhos mais eficazes para rastrear transformações culturais na África Oriental. Cada povo carrega instrumentos que funcionam como “objetos históricos” no sentido chartieriano: condensam práticas sociais e modos de percepção.

Baganda

Entre os Baganda, encontram-se o amadinda (xilofone), akadinda, harpa ennanga, tambores engalabi, tambores reais mujaguzo, a trompa nakasi e chocalhos. Estes instrumentos se organizam em estruturas musicais interligadas ao palácio real e às formas de transmissão oral.

Banyoro

Os Banyoro partilham afinidades com essa tradição, utilizando tambores, harpas e flautas. Embora algumas fontes mencionem o madinda, esse instrumento é canonicamente associado aos Baganda; entre os Banyoro seu uso não é tão documentado. Essa nuance é um exemplo típico de um problema micro-histórico: a necessidade de verificar variações locais e adaptações culturais que não aparecem nas narrativas mais amplas.

Basoga

Entre os Basoga, o destaque permanece no endingidi (rabeca), tambores e entongoli (lira arqueada). Os Banyankole, por sua vez, possuem o enanga, tambores engoma e chocalhos ligados a danças peculiares. Entre os Hutu, surge o tambor ingoma, elemento central também no Burundi, onde forma parte de rituais coletivos.

Chifre da África

No Chifre da África, instrumentos como krar (lira etíope), masinqo (violino de uma corda), tambores e lyre begena moldam sonoridades ligadas às tradições litúrgicas e ao canto responsorial. Entre os Somalis, o oud e o tambor durbaan compõem estruturas poético-musicais interligadas à oralidade e ao verso tradicional.

Povos pastoris

Nos povos pastoris como Maasai, Samburu e Turkana, predominam vozes, chocalhos, sinos de gado e tambores rituais. Já entre os povos costeiros e insulares — como Swahili, Comorianos e grupos de Madagascar — aparecem o ngoma, o gabusi, o zeze (rabeque), a valiha (tubo-cítara malgaxe) e kabosy.

Esses instrumentos não são apenas ferramentas musicais: constituem regimes de memória. Cada material — madeira, cabaça, couro — cria um elo entre a paisagem e a prática social. A micro-história revela que variações locais na construção de um tambor ou no tamanho de uma harpa podem indicar fronteiras de identidade e processos de transmissão entre gerações.

África Oriental: Cultura, som e história

A análise conjunta dos povos, instrumentos e regiões da África Oriental mostra que a música funciona como eixo estruturante de diversas culturas. A História Cultural ilumina o modo como práticas musicais se articulam a representações de poder (como os tambores reais), identidade (como as poesias somalis) e religiosidade (como o canto etíope). A micro-história, por outro lado, enfatiza a força dos detalhes: uma afinação, um gesto do músico, uma variação técnica revelam tensões entre tradição e reinvenção.

Assim, compreender a África Oriental pelo prisma da música tradicional não é apenas catalogar povos e instrumentos: é reconhecer que cada som, cada objeto e cada performance é uma forma singular de produzir história, memória e sentido.

 

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