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Em defesa da interculturalidade: por que eu sou contra o multiculturalismo?

Um olhar humanista sobre os limites da tolerância e a urgência de um diálogo ético entre culturas

O desafio da convivência humana

Precisamos ir além da tolerância aparente e abraçar a interculturalidade, que se baseia em diálogo, empatia e princípios universais de direitos humanos.

Vivemos um tempo de fronteiras abertas e identidades múltiplas. Povos, crenças e costumes se cruzam em escala nunca antes vista. Nesse contexto, o multiculturalismo se tornou palavra de ordem — símbolo de tolerância e progresso. Mas a simples coexistência de culturas não garante justiça nem dignidade.

Os limites do multiculturalismo

O multiculturalismo, ao buscar respeitar todas as tradições, muitas vezes se transforma em conivência com a violência. Em nome da diversidade, fecham-se os olhos diante de práticas que ferem a dignidade humana — como o apedrejamento de mulheres, o infanticídio de gêmeos e a mutilação genital feminina.

A interculturalidade, ao contrário, respeita sem relativizar. Ela reconhece que o diálogo entre culturas é possível, mas que nenhuma tradição pode justificar a dor ou a desigualdade.

A verdadeira tolerância não consiste em aceitar tudo, mas em respeitar o outro sem abdicar da ética.

Humanismo supraideológico

A defesa da interculturalidade nasce de uma visão humanista e supraideológica, que coloca o valor da vida acima de qualquer bandeira. É preciso olhar além das causas politicamente convenientes e das disputas que geram votos ou manchetes.

Enquanto o mundo se mobiliza seletivamente por algumas causas — como a questão palestina — cristãos são assassinados na Nigéria e crianças morrem de fome ou guerra no Sudão, sem a mesma comoção internacional.

Um verdadeiro humanismo não escolhe vítimas por afinidade ideológica. Ele reconhece o sofrimento onde quer que exista, independentemente de fronteiras, religiões ou preferências políticas. Ser humanista é recusar a seletividade moral que transforma a dor em instrumento de discurso. É entender que a empatia não deve ser filtrada por conveniências partidárias ou narrativas midiáticas.

Quando uma criança morre de fome no Sudão, uma mulher é apedrejada no Irã ou um cristão é morto na Nigéria, a humanidade inteira fracassa — e o silêncio cúmplice se torna uma forma de conivência. O verdadeiro compromisso ético está em defender cada vida como se fosse única, porque o valor da dignidade humana não depende de nacionalidade, crença ou posição geopolítica.

Interculturalidade é coexistência com ética universal

A interculturalidade propõe uma coexistência baseada em diálogo, respeito e ética universal. Não se trata de impor valores ocidentais, mas de afirmar um mínimo moral compartilhado: o direito à vida, à liberdade e à dignidade.

Ela também defende a tolerância religiosa para todos os credos, sem hierarquias de fé ou preferências políticas.

Enquanto o multiculturalismo cria fronteiras invisíveis entre comunidades, a interculturalidade constrói pontes — transformando diferenças em aprendizado mútuo.

O multiculturalismo tende a isolar os grupos em zonas de conforto cultural, onde cada identidade se fecha sobre si mesma em nome do respeito, mas acaba por se distanciar do diálogo. Já a interculturalidade rompe esses muros simbólicos, convidando à escuta, ao encontro e à transformação recíproca.

Nela, o contato entre culturas não é uma ameaça, mas uma oportunidade de crescimento coletivo. A diversidade deixa de ser apenas um dado sociológico e se torna um projeto ético: o de aprender com o outro sem renunciar ao que é essencialmente humano. Assim, a interculturalidade não celebra a diferença como separação, mas como caminho para a compreensão e para a paz.

A omissão das instituições internacionais

A ONU, que deveria zelar pelos direitos humanos, tem se mostrado refém do discurso multiculturalista. Em nome da “tolerância cultural”, frequentemente ignora crimes contra a humanidade cometidos sob o pretexto de tradição.

Essa passividade enfraquece sua legitimidade moral. O mundo não precisa de declarações neutras, mas de coragem ética e interculturalidade ativa — um compromisso real com a vida humana acima das conveniências diplomáticas.

Quando organizações internacionais limitam-se a emitir notas de repúdio ou apelos genéricos à paz, sem agir diante de massacres, perseguições religiosas e crises humanitárias, tornam-se cúmplices por omissão. A neutralidade, nesses casos, não é sinal de equilíbrio, mas de indiferença.

A verdadeira autoridade moral nasce da disposição de enfrentar injustiças, ainda que isso contrarie interesses políticos ou econômicos. É esse espírito que a interculturalidade exige: ação concreta, empatia prática e defesa intransigente da dignidade humana, independentemente de quem seja a vítima ou o agressor.

Conclusão: o futuro é intercultural

A interculturalidade representa o próximo passo da convivência global. Ela supera o multiculturalismo porque busca diálogo com responsabilidade, respeito com limites e diversidade com dignidade.
Ser intercultural é reconhecer que a coexistência só é verdadeira quando nasce da empatia, do aprendizado e da justiça.

Em tempos de confusão moral, não basta tolerar — é preciso compreender e proteger.

A tolerância, quando se limita à indiferença, se torna apenas uma forma polida de abandono. Compreender significa escutar o outro com empatia, reconhecer sua história e suas dores; proteger é agir em defesa da vida e da dignidade quando essas são ameaçadas.

Assim sendo, a interculturalidade nasce exatamente dessa síntese: respeito que não se cala, diálogo que não relativiza o sofrimento. Num mundo em que as fronteiras ideológicas se sobrepõem à compaixão, o verdadeiro ato revolucionário é permanecer humano — capaz de sentir, pensar e agir em nome do que é justo.

A diversidade é um dom da humanidade — mas sem ética, ela se torna apenas indiferença. A interculturalidade é, antes de tudo, um compromisso com o que nos torna humanos.

 

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Davi "Nana Kofi Adom" Valukas

Davi Valukas é músico, poeta, ensaísta, redator, professor, designer instrucional, especialista em gamificação e embaixador cultural. Representa o Reino Bunyoro Kitara no Brasil, monarquia subnacional localizada em Uganda, na região dos Grandes Lagos, na África Oriental, além de ser membro de diversas organizações socioculturais de diversos países. Atua na interseção entre Cultura, Tradição & Inovação, Tecnologia e Educação. É graduado em Gestão de Recursos Humanos, com pós-graduações lato sensu em Docência dos Ensinos Médio, Técnico e Superior, em Educação Musical e Ensino de Artes e em Semiótica e Análise do Discurso, além de ser pós-graduando em História Cultural. Recebeu alguns prêmios por sua atuação cultural, entre eles a Comenda da Ordem do Mérito Cultural Carlos Gomes, da Sociedade Brasileira de Artes, Cultura e Ensino, e a Comenda das Letras da Ordem do Mérito Histórico-literário Castro Alves, da Confederação de Ciências, Letras e Artes do Brasil.

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