Direita e Esquerda: uma reflexão de Rodrigo Morais

Direita e esquerda: uma reflexão de Rodrigo Morais é um artigo publicado originalmente no Facebook do citado autor.
“Fare il bagno nella vasca è di destra
Far la doccia invece è di sinistra
Un pacchetto di Marlboro è di destra
Di contrabbando è di sinistra
Ma cos’è la destra cos’è la sinistra”
Giorgio Gaber
Neste ano, em que coincidiu que um quarto da população do planeta está indo às urnas, é importante esclarecer o que realmente significa a mais atual terminologia que expressa os fenômenos da nova conjuntura global, a fim de se entender o que está em discussão ao redor do mundo.
A bem da verdade, não existe mais direita e esquerda no sentido tradicional. Em todo o mundo, a mídia desinformante divide o espectro entre centro-esquerda e centro-direita contra qualquer outra coisa que eles chamam de extrema-direita nacionalista. Mas essa divisão dissimulada, no entanto, acaba por afirmar a verdade intrínseca das diferenças essenciais entre dois distintos grupos em formação nos últimos 10 anos.
De um lado, temos todos os partidos centristas, com mínimas diferenças entre si, que apoiam cortes nos gastos sociais, austeridade fiscal, desindustrialização, subserviência ao sistema financeiro, identitarismo e demais formas de neocolonialismo perpetrado pelos EUA-OTAN. São os partidos que converteram o estado de bem-estar social no estado fiador, que chancela o rentismo e a financeirização da economia e aprisiona o restante da população ao capital, subornado por políticas assistencialistas.
Do outro lado do novo espectro estão os partidos nacionais-populistas, que prometem destruir este status quo. São, por exemplo, o AFD alemão, o Front National de Marine le Pen e o Fratelli D’Italia de Meloni, nacionalistas e protecionistas que não se conformam com a Comissão OTAN/UE, além de se oporem à guerra na Ucrânia e ao isolamento da Rússia. É claro que os partidos centristas chamam toda essa oposição nacionalista de neofascista, da mesma forma que a imprensa inglesa descreve tanto os Conservadores como os Trabalhistas como centristas, mas Nigel Farage é tratado como um populista de extrema-direita.
Características como o nacionalismo e o protecionismo podem parecer estranhas para um direitista brasileiro, porque aqui a nova direita é liberal e vassala do império, numa esquizofrenia de quem crê combater o globalismo enquanto endossa todas as ações concretas dos organismos internacionais verdadeiramente globalistas, que impõem seu poderio por meio de uma guerra de espectro total e de natureza híbrida e revoluções coloridas. A direita brasileira comete este equívoco principalmente porque foi levada a confundir a representação dos valores ocidentais de um passado distante dos EUA com o atual império comandado por um deep state corrupto e criminoso. Não entendem que, seja a Casa Branca ocupada por Democratas ou Republicanos, o establishment dos Estados Unidos tem uma ideologia: o imperialismo. E se guiam pela filosofia do Destino Manifesto, independente de quem ocupe a gerência de plantão.
Os eleitores da França, Alemanha e Itália estão se afastando deste beco sem saída. Todos os partidos centristas estão colecionando derrotas consecutivas, e todos os seus líderes derrotados tinham os mesmos interesses pró-EUA. Steve Keen descreve assim o jogo político centrista: “O partido no poder dirige políticas neoliberais; perde as próximas eleições para rivais que, quando chegam ao poder, também dirigem políticas neoliberais. Eles então perdem e o ciclo se repete.” No entanto, nos últimos anos, as eleições europeias têm sido um grande voto de protesto, com os eleitores não tendo outro lugar para ir senão votar nos partidos nacionalistas populistas que prometem destruir este status quo.
O que está sendo chamado de “extrema direita” tem apoiado políticas que costumavam ser chamadas de “esquerda”, opondo-se à guerra e demandando melhorias nas condições econômicas do trabalho (exceto imigrantes). E tal como aconteceu com a velha esquerda, os principais apoiadores desta nova direita são os eleitores mais jovens. Afinal de contas, são eles que suportam o peso da queda dos salários reais em toda a Europa e veem que o seu caminho para a mobilidade social já não é o que era para os seus pais (ou avós) na década de 1950, após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando havia muito menos dívidas habitacionais do setor privado, dívidas de cartão de crédito e especialmente, dívida estudantil. Naquela época, todos podiam comprar uma casa por meio de uma hipoteca, mas hoje as famílias, empresas e os governos são obrigados a contrair empréstimos crescentes apenas para manter o status quo.
Enquanto isso, os antigos partidos de esquerda juntaram-se aos centristas, tornando-se neoliberais globalistas, enquanto os sociais-democratas e trabalhistas de hoje já não são a favor dos trabalhadores, mas defendem a austeridade e os cortes nos gastos sociais, mas gastam 2% ou 3% do PIB no rearmamento militar, principalmente em armas americanas.
Ou seja, os líderes americanos controlam a política europeia através da OTAN e da Comissão Europeia e esta passividade está colocando estas economias em pé de guerra, com inflação alta, dependência comercial dos Estados Unidos e défices resultantes das sanções comerciais e financeiras contra a Rússia e a China. Este status quo político comprime os salários e os padrões de vida e polariza as economias.
É aí que a velha divisão entre direita e esquerda perde o sentido. O recente aumento de partidos descritos como de “extrema direita” reflete a oposição popular generalizada contra a guerra da Ucrânia, e especialmente às consequências desse apoio para as economias europeias. Tradicionalmente, as políticas anti-guerra têm sido de esquerda, mas os partidos de “centro-esquerda” da Europa estão a seguir a “liderança pró-guerra” dos EUA. Esta suposta postura internacionalista já se mostrou unipolar e centrada nos americanos. Os países europeus não têm voz independente.
Este estado de coisas é uma ruptura radical com as normas do passado. A OTAN se transformou de uma aliança defensiva para uma aliança ofensiva, na medida em que se tornou o braço armado do império americano para manter o seu domínio unipolar sobre os assuntos mundiais. Aderir às sanções americanas à Rússia e à China e esvaziar os seus próprios arsenais para enviar armas à Ucrânia para tentar sangrar a economia russa não prejudicou a Rússia, mas a fortaleceu. As sanções funcionaram como um muro de proteção para a sua própria agricultura e indústria, levando a investimentos que deslocam as importações. Mas estas sanções prejudicaram grandemente a Europa, especialmente a Alemanha.
Por sua vez, os BRICS+ expressam as mesmas exigências políticas de ruptura do status quo que as populações nacionais do Ocidente procuram. A Rússia, a China e outros países líderes do bloco (com exceção do Brasil, totalmente submetido aos interesses americanos e da financeirização) estão trabalhando para desfazer o legado da polarização económica endividada que se espalhou pelo Ocidente, pelo Sul Global e pela Eurásia, como resultado da diplomacia dos EUA/OTAN e do FMI.
A ironia é que, após a Segunda Guerra Mundial, o internacionalismo prometeu um mundo pacífico. As duas Guerras Mundiais haviam sido atribuídas a rivalidades nacionalistas. Estas deveriam acabar, mas em vez de o internacionalismo acabar com as rivalidades nacionais, a versão ocidental que prevaleceu com o fim da Guerra Fria viu os Estados Unidos cada vez mais nacionalistas e protecionistas bloquearem a Europa e outros países satélites contra a Rússia e o resto da Ásia. O que se apresenta como uma “ordem internacional baseada em regras”, na verdade é aquela em que os diplomatas americanos estabelecem e alteram as regras para refletir os interesses do seu país, ignorando ao mesmo tempo o direito internacional e exigindo que os aliados sigam a liderança dos EUA. Não tem nada de internacionalismo pacífico.
Uma ruptura nas relações normais entre a Eurásia e a Europa parece irreversível nos próximos anos e toda uma geração de europeus permanecerá isolada das economias que mais crescem no mundo. E esta fratura da ordem mundial unipolar americana está mostrando que partidos antieuro não são extremistas radicais, mas pessoas que buscam restaurar a prosperidade perdida e a autossuficiência diplomática da Europa. Esta parece ser a única alternativa ao colonialismo americano sobre a Europa..
O próprio Brasil, ainda alienado destas mudanças geopolíticas, vai precisar se posicionar neste realinhamento das placas tectônicas globais. Está unicamente em nossas mãos a construção de um futuro livre da atual submissão imperial financista, por meio da construção de um projeto nacional soberano e corajoso. Liberdade, ainda que tardia!
Rodrigo Morais